Experimento feito na maior floresta tropical do mundo mostra colapso de árvores com ressecamento do solo
MARIA GUIMARÃES | ED. 238 | DEZEMBRO 2015
Ao tomar suco por um canudo é preciso cuidado para manter o tubo bem imerso. Do contrário, bolhas de ar se formam e rompem a estrutura do fio líquido que leva a bebida do copo à boca. Aumente a escala para a altura de um prédio de 10 andares e pode imaginar o fluxo de água dentro de uma das gigantescas árvores amazônicas. A transpiração pelas folhas dá origem à sucção que movimenta a água desde as raízes até as imensas copas das árvores, que podem ultrapassar os 40 metros de altura, e lança para a atmosfera uma umidade responsável por entre 35% e 50% das chuvas na região, com impacto importante na hidrologia global. Quando esse sistema falha, o ciclo da água não é o único afetado. As árvores, que até então pareciam funcionar normalmente, subitamente morrem. Um experimento liderado pelo ecólogo inglês Patrick Meir, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e da Universidade Nacional da Austrália, provocou 15 anos de seca numa parcela amazônica e revelou o papel desse mecanismo, de acordo com artigo publicado em novembro na revista Nature.
Para construir o experimento foram necessários 500 metros cúbicos (m3) de madeira, 5 toneladas de plástico, 2 toneladas de pregos e 23 mil horas-homem (10 homens trabalhando de segunda a segunda por um ano), de acordo com o meteorologista Antonio Carlos Lola da Costa, da Universidade Federal do Pará (UFPA). O resultado são 6 mil painéis de plástico que medem 3 metros (m) por 0,5 m cada um, entremeados por 18 calhas com 100 m de comprimento responsáveis por impedir que 50% da chuva que cai chegue ao solo numa parcela de 1 hectare na Floresta Nacional de Caxiuanã, no norte do Pará, onde o Museu Paraense Emílio Goeldi mantém uma estação científica. “O Patrick me procurou em 1999 com essa ideia maluca”, conta Lola. O meteorologista não sabia por onde começar, mas estudou as fotos que Meir lhe mandou de um experimento similar, o Seca Floresta, que estava sendo montado na Floresta Nacional do Tapajós, no oeste do estado, e saiu a campo. “Em um ano estava feito.” Não era um feito logístico trivial. Chegar a Caxiuanã envolve sair de Belém e passar 12 horas a bordo de um barco repleto de redes coloridas apinhadas, até Breves. Foi nessa cidade de cerca de 100 mil habitantes que Lola conseguiu o material para sua empreitada, como os tubos de ferro galvanizado para montar duas torres com 40 m de altura. De lá, 10 horas em um barco menor levam a Caxiuanã, onde o material precisou ser carregado pelo meio da densa floresta.
O experimento conhecido como Esecaflor, abreviação de Efeitos da Seca da Floresta, é o mais extenso e mais duradouro no mundo a avaliar o efeito de seca numa floresta tropical. O único comparável é o Seca Floresta, que abrangeu uma área similar e foi encerrado após cinco anos (ver Pesquisa FAPESP nº 156). Nesta última década e meia, Antonio Carlos Lola tem sido o principal responsável por monitorar a reação da floresta e manter o experimento de pé mesmo quando ele é constantemente derrubado por galhos e árvores que caem, uma empreitada que exige entre R$ 10 mil e R$ 15 mil por mês. Um valor que tende a subir, agora que mais árvores têm sucumbido à seca, destruindo parte da estrutura. “Passo por volta de seis meses do ano no meio do mato, com interrupções”, conta ele, que tem coordenado uma série de projetos de alunos de mestrado e doutorado no âmbito do experimento.
Observação prolongada
Em linhas gerais os resultados dos dois experimentos amazônicos contam histórias semelhantes, como mostra artigo de revisão publicado por Meir e colegas em setembro na revista BioScience: nos primeiros anos a floresta parece ignorar a falta de chuva e mantém o funcionamento normal. Passados alguns anos de seca, porém, galhos começam a cair e árvores a morrer, sobretudo as mais altas e as menores. Experimentos em outros países analisaram uma área menor ou duraram menos tempo – o maior, na Indonésia, funcionou por dois anos.
Em linhas gerais os resultados dos dois experimentos amazônicos contam histórias semelhantes, como mostra artigo de revisão publicado por Meir e colegas em setembro na revista BioScience: nos primeiros anos a floresta parece ignorar a falta de chuva e mantém o funcionamento normal. Passados alguns anos de seca, porém, galhos começam a cair e árvores a morrer, sobretudo as mais altas e as menores. Experimentos em outros países analisaram uma área menor ou duraram menos tempo – o maior, na Indonésia, funcionou por dois anos.
O estudo de Caxiuanã traz resultados inéditos por sua longa duração: o colapso das maiores árvores só aconteceu após 13 anos da seca experimental e pode representar um ponto de inflexão em que a floresta muda de cara. Desde 2001 os pesquisadores vêm fazendo medições fisiológicas nas árvores, comparando a área com restrição de chuva e uma parcela semelhante sem intervenção. Nos últimos dois anos, começaram a registrar uma mortalidade drástica entre as árvores mais altas, raras por natureza, que caem causando destruição e transformando a floresta pujante numa mata de aparência degradada. “Das 12 árvores mais altas com diâmetro maior que 60 centímetros, restam apenas três”, conta Lucy Rowland, pesquisadora britânica em estágio de pós-doutorado no grupo de Meir na Universidade de Edimburgo que está à frente do projeto desde 2011. A surpresa foi identificar no sistema hidráulico a causa interna dessa mortalidade. Quando o suprimento de água no solo é reduzido, aumenta a tensão na coluna d’água no interior dos vasos condutores das árvores, o xilema. A integridade dessa coluna, que depende da adesão natural entre as moléculas de água, acaba comprometida por bolhas de ar, um processo que os especialistas chamam de cavitação. A consequência desse colapso, que acontece de repente, é a incapacidade de levar água das raízes às folhas e a morte súbita da árvore. Meir ressalta que essa falha hidráulica funciona como um gatilho que inicia o processo de morte, sem ser necessariamente a causa final – ainda desconhecida.
Outra hipótese favorecida para explicar a morte de árvores em situações de seca é o que os pesquisadores chamam de “fome de carbono”. Quando as folhas fecham os estômatos (poros que permitem transpiração e trocas gasosas) para evitar o ressecamento, também reduzem a absorção de carbono. O mais provável é que os dois processos aconteçam simultaneamente, mas no caso de Caxiuanã os pesquisadores descartaram a falta de carbono como fator principal ao verificar que as árvores continham um suprimento normal desse elemento e não pararam de crescer até a morte.
“Medimos a vulnerabilidade do sistema hidráulico das plantas à cavitação e vimos que ela tem relação com o diâmetro da árvore”, conta o biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), colaborador do projeto há dois anos. A observação condiz com a preponderância de vítimas avantajadas: 15 árvores com diâmetro maior que 40 centímetros caíram na área experimental, em comparação com apenas uma ou duas na zona de controle, onde não há exclusão de chuva. O impacto é grande, porque essas árvores gigantescas concentram uma parcela importante da biomassa da floresta e do dossel emissor de umidade. Enquanto isso, as de tamanho médio estão crescendo até mais, graças à luz que chega até elas agora que a mata vai se tornando esparsa e cheia de frestas entre as copas.
Oliveira tem estudado as relações entre o solo, as plantas e a atmosfera, e em uma revisão publicada em 2014 na revistaTheoretical and Experimental Plant Physiology mostrou que mudanças no regime de precipitação podem causar um estresse hídrico letal por cavitação, mesmo que a seca seja compensada por um período de chuvas intensas, de maneira que o total anual de chuvas não se altere. Para ele, é preciso entender melhor o funcionamento fisiológico e anatômico das árvores nessas condições para prever sua reação às mudanças previstas no clima. Essas particularidades também devem explicar por que a reação varia entre espécies. O estudo de Caxiuanã, por exemplo, aponta o gênero Pouteria como muito vulnerável à seca e o Licania como o mais resistente, entre as árvores examinadas. Os mecanismos usados pelas plantas são diversos, como absorver água pela parte aérea – pelas folhas e até pelos ramos e tronco. “Precisamos ver quais árvores na Amazônia fazem isso”, planeja.
Outro efeito da mortalidade das árvores é o acúmulo de mais folhas e galhos no solo da floresta. “Quem trabalha com fogo chama essa camada de combustível”, brinca o ecólogo Paulo Brando, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Centro de Pesquisa Woods Hole, Estados Unidos. Um dos integrantes do Seca Floresta, cujo imenso banco de dados ainda está em análise quase 10 anos depois de encerrado o projeto, ele mais recentemente conduziu um estudo com incêndios florestais num experimento no Alto Xingu, a região mais seca da Amazônia. Segundo os resultados apresentados em artigo de 2014 na PNAS, as árvores resistiram bem à primeira queimada, em 2004, em parte porque a própria umidade da floresta impediu que o fogo atingisse proporções devastadoras. O resultado marcante veio em 2007, quando o incêndio programado coincidiu com uma seca acentuada e representou, na interpretação dos autores, um ponto de inflexão na floresta. “O que vimos foi fogo de grande intensidade que matou tudo, principalmente as árvores pequenas”, conta, concluindo que a interação entre seca e fogo potencializa as forças motrizes de degradação. Menos água no solo, menos umidade no ar e mais combustível no chão agem em conjunto e aumentam muito a probabilidade de fogo. E não se pode esquecer a ação humana nas fronteiras agrícolas, onde o fogo é comum para manejo e se soma aos efeitos do desmatamento, que criam ilhas de floresta com bordas vulneráveis. “A fronteira da floresta com uma plantação de soja, por exemplo, é 5 graus Celsius mais quente do que o interior da floresta, e mais seca”, diz Brando.
Ele é coautor de um estudo feito pela geógrafa Ane Alencar, também do Ipam, que analisou registros de incêndios na Amazônia, por imagens de satélite, entre 1983 e 2007. Os resultados, publicados em setembro na Ecological Applications, mostram que já houve um aumento na ocorrência de fogo florestal em resposta a um clima mais seco. Comparando três tipos de mata no leste da Amazônia, o grupo verificou que a floresta densa é sensível a mudanças climáticas, enquanto as formações aberta e de transição estão mais sujeitas à ação humana por desmatamento.
Futuro
Como não há bola de cristal para enxergar o que vem à frente, vários grupos buscam desenvolver modelos climáticos e ecológicos. Brando participou de um estudo liderado por Philip Duffy, do Woods Hole, que comparou a capacidade de modelos climáticos acomodarem as secas que aconteceram em 2005 e 2010 na Amazônia, tão drásticas que não era esperado que se repetissem num período menor do que um século. Os resultados, publicados em outubro no site da PNAS, preveem um aumento significativo de secas, com um crescimento da área afetada por essas secas na região amazônica. O problema, segundo Brando, é que boa parte dos modelos lida com médias, e o que está em questão são extremos climáticos. Este ano, caracterizado por um fenômeno El Niño mais forte do que a média, a equipe do Esecaflor encontrou, em novembro, uma floresta praticamente sem chuva havia mais de dois meses. A expectativa é, nos próximos anos, acompanhar as consequências desse período.
Como não há bola de cristal para enxergar o que vem à frente, vários grupos buscam desenvolver modelos climáticos e ecológicos. Brando participou de um estudo liderado por Philip Duffy, do Woods Hole, que comparou a capacidade de modelos climáticos acomodarem as secas que aconteceram em 2005 e 2010 na Amazônia, tão drásticas que não era esperado que se repetissem num período menor do que um século. Os resultados, publicados em outubro no site da PNAS, preveem um aumento significativo de secas, com um crescimento da área afetada por essas secas na região amazônica. O problema, segundo Brando, é que boa parte dos modelos lida com médias, e o que está em questão são extremos climáticos. Este ano, caracterizado por um fenômeno El Niño mais forte do que a média, a equipe do Esecaflor encontrou, em novembro, uma floresta praticamente sem chuva havia mais de dois meses. A expectativa é, nos próximos anos, acompanhar as consequências desse período.
“O relatório de 2013 do IPCC ressaltou nossa falta de capacidade em prever a mortalidade relacionada à seca nas florestas como uma das incertezas na ciência ligada à vegetação e ao clima”, conta Meir. “Nossos resultados indicam qual mecanismo fisiológico precisa ser bem representado pelos modelos para prever a mortalidade das árvores”, explica. Nessa busca por reduzir incertezas e antecipar o futuro, Lucy – que é especialista em usar dados de campo para alimentar modelos – vem trabalhando em parceria com o grupo de Stephen Sitch, na Universidade de Exeter, na Inglaterra, para aprimorar a representação das respostas das florestas tropicais à seca no modelo de vegetação conhecido como Jules. A Amazônia fala claramente sobre a importância de políticas que busquem reduzir as mudanças climáticas, tema que inundou as notícias nos últimos tempos por causa da Conferência do Clima em Paris (COP21), que ocorreu este mês. Os experimentos mostram efeitos localizados, mas secas naturais como as da década passada podem afetar uma área extensa da floresta. Meir ressalta a necessidade de quebrar o ciclo: ao se decomporem, imensas árvores mortas liberam na atmosfera uma quantidade de carbono que tende a agravar o efeito estufa. “É possível desenvolver regras de energia e uso da terra que sejam economicamente benéficas, sem danificar o ambiente no longo prazo”, completa.
Projeto
Interações entre solo-vegetação-atmosfera em uma paisagem tropical em transformação (n° 2011/52072-0); Modalidade Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft Research; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (IB-Unicamp); Investimento R$ 1.082.525,94.
Interações entre solo-vegetação-atmosfera em uma paisagem tropical em transformação (n° 2011/52072-0); Modalidade Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e Acordo FAPESP-Microsoft Research; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (IB-Unicamp); Investimento R$ 1.082.525,94.
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